Um piano caiu do céu. Bateu no chão com um estrondo desafinado, como uma bomba sem jeito para cantar e abriu no passeio um buraco do tamanho de uma camioneta de areia. Das pequenas.
Algumas pessoas, curiosas, juntaram-se no local do acontecimento.
Álvaro, dono da pastelaria da esquina, olhou para o céu à procura de um avião que pudesse ter deitado o piano cá para baixo, mas só viu nuvens.
Ana, dona da mercearia de outra esquina, olhou para as janelas para ver se encontrava alguma aberta, pois estava convencida que o piano tinha sido atirado por algum compositor enlouquecido, como vira num filme.
Amândio, cliente habitual da pastelaria e da mercearia, olhou para o piano, lamentou o estado em que o instrumento ficou e esperou que os outros encontrassem uma explicação para o sucedido.
Amélia, Alcina, Antónia e Agripina, quatro meninas felizes que estavam a jogar às escondidas, juntaram-se aos outros depois de passado o susto inicial. Também elas não conseguiam encontrar explicação para aquele fenómeno bizarro.
Logo em seguida, chegaram os rapazes que andavam a jogar à bola no descampado do bairro, António, Almerindo, Armando, Américo, André e Angélico. Nenhum deles disse palavra, pois todas as suas explicações eram fantasiosas.
Finalmente apareceu Carlos, o miúdo estudioso do terceiro andar do número 10, que disse, com ar muito sério:
– É das alterações climáticas.
Houve um segundo de silêncio admirado, a seguir ao qual todos romperam às gargalhadas. Essa era boa, as alterações climáticas. O rapaz estava, por certo, demasiado habituado a ouvir nos noticiários que as alterações climáticas eram razão para os mais estranhos fenómenos e, por isso, devia pensar que eram a causa de tudo o que é estranho. Ninguém ligou àquela teoria mirabolante, mas também ninguém ofereceu outra explicação.
Veio a polícia, vieram os bombeiros e chamaram Artur, que limpou a rua e levou os restos mortais do piano na sua camioneta de areia (das grandes). O buraco no passeio ficou lá, à espera de alguém que o viesse reparar.
Passada uma semana, quando já todos tinham esquecido o espetáculo do piano, voltou a acontecer algo surpreendente. Ao final da tarde, uma chuva dourada tombou sobre a rua. Quem a visse através de uma janela poderia pensar que estava a chover ouro. Durou apenas dez segundos, deixando todos surpreendidos e sem reação. Quando parou, as pessoas saíram à rua para ver do que se tratava. Eram espigas de trigo, tantas que cobriram toda a rua e encheram o buraco do piano.
– É incrível, – disse Ana.
– É bruxaria, – disse Álvaro.
– É inexplicável, – disse Amândio.
– É fantástico, – disseram a uma só voz Amélia, Alcina, Antónia e Agripina.
– É magia, – disseram em coro António, Almerindo, Armando, Américo, André e Angélico.
– É das alterações climáticas, – disse Carlos.
Todos olharam para ele e riram.
Dessa vez, a polícia não apareceu, apenas os bombeiros que, tão surpreendidos quanto os outros, acharam que nada havia a fazer a não ser chamar o Artur e o seu grande camião de areia para limpar novamente a rua.
Apareceu também uma equipa de reportagem de um dos canais de televisão. Andreia, uma jornalista enérgica, entrevistou todos os presentes, incluindo as crianças, que estavam desejando ver-se na televisão. Amadeu, o operador de câmara sonolento, filmou tudo com cuidado.
Quando Andreia perguntou a Carlos o que ele pensava e ouviu a resposta habitual de que a culpa era das alterações climáticas, não conseguiu evitar um sorriso. Olhou para a câmara, piscou um olho e disse: – Que querido.
Ao início da noite as pessoas do bairro fizeram uma festa quando se viram todos no pequeno ecrã do café do Augusto. A situação era tão surreal que ninguém tentou averiguar o que se passava, convencidos de que nunca mais voltaria a acontecer. A partir do momento em que apareceu nas notícias da televisão, passou a ser considerado algo normal, como tantas outras histórias invulgares que os jornalistas encontram espalhadas pelo país.
Mas quando a terceira chuva de objetos caiu no mesmo sítio, já ninguém podia ignorar. Dessa vez foram sabonetes. Centenas de sabonetes dos mais variados perfumes e cores. Ao caírem no passeio e na estrada faziam um barulho parecido com o estalar de bolhas de ar desses plásticos que se usam para embrulhar coisas frágeis. Pop, pop, pop...
Dessa vez todos os canais de televisão compareceram, até os desportivos, que quiseram entrevistar a pequena equipa de futebol do bairro. Aos bombeiros coube-lhes limpar a rua com as suas mangueiras. O grande camião de areia de Artur não serviria para nada. A polícia também lá estava, não apenas para tomar nota da ocorrência, mas porque queriam ser eles a resolver o mistério da chuva estranha, como todos agora lhe chamavam. Para tal, enviaram o seu melhor detetive, Alexandre, também conhecido por Alemão, graças aos seus olhos azuis como o céu.
– Isto só pode ser obra do Agitador, – disse Alexandre, com convicção, para um dos seus oficiais.
O Agitador era um jovem que aterrorizava o bairro desde os tempos de liceu. O seu verdadeiro nome era Afonso, mas ganhara a alcunha porque, por onde passava, deixava sempre uma grande agitação.
Quando ouviu isso, Carlos aproximou-se do detetive, puxou-lhe a bainha da camisa desfraldada para lhe chamar a atenção e disse:
– A culpa é das alterações climáticas.
Alemão fez-lhe uma festa enervante no cabelo e disse-lhe, de uma forma condescendente, que sim, que ia ver isso, para que o garoto não o voltasse a incomodar.
– Vamos embora, – disse ele para os outros. – Apanhem-me o Agitador e tragam-no para o interrogatório. Bateu com o punho de uma mão na palma da outra e acrescentou: – Vamos amolecê-lo até piar. E partiram.
Nessa noite, ao ver atentamente as notícias na televisão, Alice, a cientista responsável pelo centro de estudos climatéricos do país, achou graça a Carlos e à sua insistência na culpa das alterações climáticas. E se ele tivesse razão? E se um fenómeno meteorológico raro, causado pelas alterações climáticas, fosse responsável por aquelas chuvas absurdas? Lembrou-se que em outros países, fortes tornados levantavam no ar vacas, carros e até casas, depositando-os mais tarde noutros locais.
No dia seguinte Alice decidiu investigar e pôs toda a sua equipa de cientistas a trabalhar no caso. Mas, após dias de estudo, não conseguiram encontrar nada que pudesse justificar os acontecimentos. O Alemão também não teve muita sorte porque o Agitador, que às vezes até confessava crimes que não tinha cometido só para ganhar mais fama, não podia confessar esse pois não sabia como o justificar.
Alice chegou a casa cansada e frustrada. Ágata, a sua filha de dez anos, vendo a mãe triste, quis saber o que se passava. Depois de ouvir a história, identificou-se com Carlos e sugeriu com muito bom senso:
– Já perguntaram ao menino o que ele quer dizer? Sabes mamã, na escola alguns dos meus colegas têm dificuldade em explicar as suas respostas. A professora de matemática está sempre a dizer que não basta dar o resultado de uma equação, é preciso mostrar o raciocínio que nos ajudou a encontrar o resultado. E a professora de português diz que não basta responder diretamente a uma pergunta com uma frase simples, é preciso justificar a resposta. Talvez esse rapaz, Carlos, tenha dificuldade em se exprimir. Alguém devia perguntar-lhe o que ele quer dizer ao culpar as alterações climáticas.
Alice ficou babada de orgulho com a inteligência da filha. Tal como ela nunca tinha pensado nisso, provavelmente nenhum outro adulto se preocupou em saber o que Carlos queria dizer.
No dia seguinte Alice contatou a mãe de Carlos que, depois de ouvir a explicação da cientista, concordou que ela falasse com o filho. Para tornar o encontro mais agradável, Ágata acompanhou-a.
Encontraram-se num parque e sentaram-se todos num banco de jardim debaixo da sombra fresca de uma árvore.
– Então Carlos, explica-nos lá porque achas que a chuva estranha é por causa das alterações climáticas? – Começou Alice.
– Sim, é por causa das alterações climáticas.
– Mas porque é que dizes isso?
– Por causa da ARCU.
– Por causa do arco?
– Não, por causa da ARCU.
– Que arco?
– A ARCU do Anastácio.
Alice olhou para a filha e encolheu os ombros. Não estava a perceber nada daquela conversa. Ágata rolou os olhos para a mãe e decidiu tomar conta da situação, já que estava mais habituada a falar com rapazes da mesma idade. Às vezes era necessário insistir.
– O que é o arco? – Perguntou ela com curiosidade.
– Não é o arco, já disse. É a ARCU.
– Desculpa. O que é a arco?
– É a Ação Revolucionária Climática Universal.
– E quem é o Anastácio.
– É o vizinho do terceiro do onze.
A mãe de Carlos explicou que o prédio número 11 ficava mesmo em frente ao deles e que um dos habitantes do terceiro andar se chamava Anastácio. Era um jovem de vinte e poucos anos que vivia com os pais e estudava na universidade.
– E que fez o Anastácio? – Continuou Ágata com o seu interrogatório.
– Ele e os amigos da ARCU fizeram uns planos, construíram uma catapulta e atiraram aquelas coisas todas para o meio da rua. Eu vi os planos através da janela do meu quarto e perguntei-lhes se podia fazer parte da equipa, mas eles riram-se e disseram que eu era muito novo. Avisaram-me para não dizer nada a ninguém, mas eu não gosto que gozem comigo. É claro, quando tentei avisar os vizinhos, a televisão e até a polícia, ninguém acreditou em mim. Então pensei que era justo que continuasse a cair a chuva estranha.
– Onde é que eles puseram a catapulta?
– O melhor sítio para esconder uma coisa é à vista de toda a gente. A catapulta está no descampado ao lado do campo de futebol coberta por canas, folhas e ramos de árvores. Para quem olha sem atenção parece ser um monte de lixo de jardim e como ninguém faz nada em relação ao lixo, ali fica, intocável. É um plano genial. De qualquer forma, a ideia deles era a de serem descobertos eventualmente.
– Onde é que eles arranjaram o piano, o trigo e os sabonetes, sabes? – perguntou Alice.
– O piano estava lá no descampado há uns dois anos. Como disse, ninguém faz nada em relação ao lixo. Estava velho e estragado, mas depois de ter ficado desfeito com a queda, ninguém reparou nisso. O resto das coisas não sei onde as arranjaram. Mas um deles trabalha num daqueles grandes supermercados que vendem coisas em grandes quantidades. Talvez tenha sido aí.
– Mas porque é que fizeram tudo isto?
– Era um protesto. Quando as pessoas descobrissem seriam alertadas para a causa da ARCU. Era para ganhar publicidade. Por isso é que não se importavam de ser descobertos.
– Podiam ter-se revelado logo a seguir a atirarem o piano, – disse Ágata. – Isso foi brutal!
– A ideia era repetir várias vezes. Hoje em dia já ninguém liga a coisas isoladas, por mais estranhas que sejam.
– Já estou a perceber, – disse Alice. – Eles queriam fazer um protesto que chamasse a atenção das pessoas para a sua causa que, pelo nome da ARCU, presumo que é lutar contra as alterações climáticas. Era essa a razão.
No dia seguinte, depois de avisadas as autoridades, os membros da ARCU foram entrevistados em todos os canais de televisão. A sua estratégia tinha resultado, ganharam imensa publicidade e durante vários dias não se falou de outra coisa.
O momento alto dessas reportagens e entrevistas foi quando a enérgica jornalista Andreia voltou a entrevistar Carlos, reconhecendo-lhe todo o mérito.
– Afinal tinhas razão, a culpa foi mesmo das alterações climáticas.
– Foi o que eu sempre disse, – concluiu Carlos.
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